Historiador fala sobre o impacto da República no Brasil
Muito além de um feriado. A data de hoje comemora um importante capítulo de transição na história política brasileira, a Proclamação da República. Confira uma entrevista com o professor de História da América pelo Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em história das festas, Jaime de Almeida.
Epoch Times: Tendo como base as transformações políticas na América Latina, como o senhor enxerga o processo de implantação da República no Brasil? Houve alguma diferença nesse processo em relação a outros países?
Jaime de Almeida: A principal diferença está no tempo. Na época em que as regiões espanholas tornaram-se independentes, o Brasil se tornou uma monarquia dependente da Coroa Portuguesa. Quando o imperador Dom Pedro I foi banido por manter muitas relações com Portugal, houve um período curto de regência e o filho desse imperador, Dom Pedro II, reinou durante praticamente toda a metade do século 19. O Brasil só se tornou República depois da abolição da escravatura no Brasil e em Cuba, último país da América Latina a tomar essa medida. Penso que a principal diferença está nessa falta de sintonia entre o tempo da República brasileira e a hispano-americana.
Epoch Times: Quais foram os maiores desafios da transição de um Brasil monárquico para um Brasil republicano?
Jaime de Almeida: Acho que o primeiro e principal desafio foi justamente enfrentar a novidade do fim da escravidão que ainda era muito recente. Era preciso criar uma disciplina entre os trabalhadores e conscientizá-los que ao lado dos trabalhadores livres, brancos e mestiços havia escravos libertos que não tinham muito interesse em procurar trabalho imediatamente. A República baixou a maioridade penal para poder intimidar e reprimir fortemente as crianças e os adolescentes filhos de escravos libertos. Essa massa recém-liberta tinha muita simpatia pela monarquia, principalmente pela Princesa Isabel (herdeira do trono e abolicionista). Os republicanos tinham medo de que a massa se mobilizasse pela volta da monarquia. Além dos interesses da Corte, havia os interesses da Igreja Católica. Por parte da República houve uma grande rapidez de implantar um calendário cívico, festa cívica e toda uma pauta laica para eliminar o prestígio da religião católica. Na verdade o catolicismo brasileiro convivia muito bem com o sincretismo de índios e mestiços. Seu maior desafio era lidar com a maçonaria.
Epoch Times: A Igreja Católica teve grande influência no reinado de D. Pedro II? É possível afirmar que a falta de apoio contribuiu para o enfraquecimento da monarquia?
Jaime de Almeida: Essa interpretação vigorou por muito tempo em livros didáticos. Mas aconteceu um problema entre o império e o clero romano por causa do início do processo de romanização do catolicismo. Alguns membros da igreja formados em Roma voltaram para implantar em suas respectivas dioceses os planos antimaçônicos e antiliberais do Papa Pio IX, com controles mais rígidos sobre a religião, confrarias, festas religiosas, e atacando finalmente a maçonaria. Dom Pedro II imperava, mas não governava. No Parlamento (aos moldes do Parlamento inglês), tanto liberais quanto conservadores eram maçons. Esses senhores decidiram adotar uma postura muito dura. Eu não creio que as autoridades da Igreja tenham deixado de perceber que o problema não era o imperador e nem o regime da monarquia. O problema era com os maçons que eram absolutamente fortes no parlamento e no ministério. A Igreja viu com muita simpatia o processo abolicionista paternalista. É muito possível que D.Pedro II tenha sido maçon. Esse movimento chegou a controlar bastante a atuação da Igreja Católica no Brasil.
Epoch Times: Entre as construções realizadas nesse período de transição, houve a intenção dos republicanos em reafirmar o poder do Estado diante da população?
Jaime de Almeida: Mais importante do que essa intenção foi importante ver nessas edificações e no próprio estilo arquitetônico uma grande hegemonia dos positivistas nos símbolos da República. Entre os republicanos brasileiros, o grupo que teve maior liberdade de operação foi o dos positivistas que tinham uma boa penetração com os intelectuais do Exército. Eles competiam com os republicanos que seguiam as perspectivas francesas e americanas. Os monumentos associavam sempre o progresso, o povo, os heróis…era a famosa “religião da humanidade” dos positivistas. Colocaram o país em uma nova etapa de evolução com uma República positivista. Aconteceu o mesmo no México com o ditador Porfirio Díaz.
Epoch Times: Quais foram as principais transformações da República no cenário político e social brasileiro?
Jaime de Almeida: Há uma mudança importante que é uma entrada explícita do antigo império brasileiro no sistema de nações americanas. Até então o Brasil tentava ser visto como uma monarquia à moda europeia no continente americano. Os republicanos diziam “nós somos americanos e temos que nos integrar ao continente”. Houve uma adesão explícita das autoridades brasileiras a proposta americana de integração continental. Quando se fez a Independência do Brasil, os outros países da América do Sul encaravam com muita suspeita o perigo da articulação entre a monarquia brasileira e a Santa Aliança europeia, o que aconteceu desde os primeiros momentos como os conflitos na região da Bacia do Prata, a região fronteiriça mais forte do Brasil.
Epoch Times: Existe alguma particularidade que caracterizou esse processo de transformação no país?
Jaime de Almeida: Em contraste com a experiência norte-americana e hispano-americana, a República brasileira foi mais tardia e por isso se implantou com padrões do século 19. Não houve nada do Iluminismo ou Romantismo das repúblicas hispano-americanas. Nossa República foi cientificista e positivista para o bem ou para o mal. A República brasileira tem muito mais clareza ao romper a relação institucional entre a Igreja e o Estado no Brasil. Isso não aconteceu com as monarquias hispânicas. O problema da religião foi tratado de uma maneira mais moderna do que o tratamento dado nas repúblicas hispano-americanas. A rebelião dos “cristeros”, no México, organizou o clero e os fiéis que repudiaram a maçonaria quando o presidente Calles estava expandido o poder da República sobre a comunidade eclesiástica. No Brasil esse conflito foi menor e mais atualizado. Houve a tragédia de Canudos, no Nordeste e do Contestado, no Sul – as guerras camponesas. Essas manifestações muito agudas não comoveram a maior parte da população.
Epoch Times: Qual é a importância da comemoração desse feriado no Brasil?
Jaime de Almeida: 95% dos brasileiros nem sabem a razão de ser do feriado, mas sabem que ele é muito bem-vindo. Isso contraria o objetivo dos positivistas, que fizeram um projeto de comemoração de uma etapa obscura para uma etapa de luzes e progresso. Não teria como criar na tradição brasileira uma festa cívica claramente marcada que empolgasse os setores importantes da população. As festas cívicas se apoiavam e se apoiam até hoje no pequeno contingente que tinha que ir às ruas como estudantes, as Forças Armadas e os funcionários públicos. O 15 de novembro, a data da República, tentou ser mais importante que o 7 de setembro, mas não vingou. A população concentra seu patriotismo na comemoração de 7 de setembro, que ironicamente coloca como personagem principal o português Dom Pedro I.
Fonte: Epoch Times