Christian Rosencreutza e os manifestos rosacrucianos do século dezessete
José Maurício Guimarães, 33º, RC, M\I\, MAR
Belo Horizonte, setembro de 2011
Era uma vez uma Rainha chamada Catarina de Medici que governava a França como bem entendia. Ela achava que o filho, Carlos IX, era um banana – vivia pensando em caçadas – e não tomava as decisões importantes para o reino. Naquele tempo, a nobreza andava inquieta por causa das hostilidades entre católicos e protestantes. A Rainha pensou numa saída e resolveu casar sua filha, Margarida de Valois, com o protestante Henrique de Navarra. Milhares de pessoas foram convidadas para as bodas, principalmente os huguenotes. Paris virou um formigueiro humano. Depois da cerimônia, iniciaram-se os festejos que, de acordo com os costumes, deveriam durar três semanas ou mais. Mas, a bruxa andava solta. Tratava-se do celerado Charles de Louvier, inimigo dos protestantes que, a mando da Rainha, feriu o líder huguenote Coligny. Os protestantes pressentiram a armadilha: a festança não passava de uma armadilha. Tentaram revidar, mas em vão. A soldadesca caiu-lhes em cima. Ao invés de punir Louvier, Carlos IX mandou matar Coligny. Em seguida, atendendo às exigências da Rainha, trucidou os convidados das bodas e todos os que transitassem pelas ruas com cara de huguenote. Era a noite de 24 para 25 de agosto de 1572 – noite de São Bartolomeu – quando pereceram mais de 30 mil pessoas. O massacre se estendeu por vários meses e noutras cidades da França, vitimando mais de 100 mil pessoas.
VIAGENS E CONSPIRAÇÕES DOS INVISÍVEIS
1 . VIAGEM AO PASSADO
Casamentos entre facções inimigas eram o principal recurso diplomático da nobreza. Que se danasse o povo. Em 1613, outro "casamento diplomático" visando interesses da corte, aconteceu na Inglaterra, quando Jaime I casou sua filha Elizabeth Stuart com o calvinista Frederico V, Eleitor do Palatino do Reno. A festa foi no Palácio de Whitehall, em Londres. Desta vez não houve matança, mas uma dissipação sem precedentes das finanças inglesas: vultosos desperdícios com joias, presentes, roupas caríssimas, diversões e fogos de artifício. Na célebre Casa de Banquetes, excessos de comida e bebida.
As coisas iam nesse pé e de mal a pior. Enquanto isso, sentimentos de consciência nacional se esboçavam em contraste com o despotismo e as manobras de sustentação das mesmas famílias no poder. Gente do povo entendia o clamor dos líderes protestantes como incentivo ao confisco das riquezas da igreja católica. A tensão aumentava até que, em 23 de maio de 1618, um grupo de protestantes invadiu o palácio de Fernando II, em Praga, praticando o esporte favorito da Boêmia: "defenestrar pessoas". Agarraram ministros pelo pescoço e os atiraram pela janela mais alta do prédio. A façanha ficou conhecida como "Defenestração de Praga". Foi o grito de largada para a Guerra dos Trinta Anos.
Entretanto, indiferentes às questões de janelas e matrimônios, o progresso do pensamento e a marcha das ciências iam, aos poucos, despertando a Europa de um longo sono. No século anterior, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama alargaram os horizontes do continente com suas explorações marítimas. A lenda do Eldorado sobre um cacique dos Andes, coberto de ouro da cabeça aos pés, inflamava a fantasia dos que sonhavam com um Novo Mundo literal ou simbólico. Giordano Bruno, morto na fogueira em 1600, ensinara um universo infinito de planetas e a possibilidade de existir vida inteligente noutros rincões onde o amor de Deus estava igualmente presente.
Desconsiderando as pendengas entre o Vaticano e as teses de Lutero, Johannes Kepler elaborava uma cosmologia fundamentada nos cinco sólidos geométricos platônicos. Galileu Galilei enfrentava a Inquisição com ideias contrárias aos postulados do vetusto Tomás de Aquino. A base metafísica da Igreja, sendo aristotélico-tomista, repudiava qualquer solidez dos platônicos e convivia de má vontade com o douto Agostinho que pregava "não caminhar em glutonarias e embriaguez, nem desonestidades, dissoluções, contendas ou rixas".
Os eruditos ainda não sabiam utilizar os novos conhecimentos e os simplórios fantasiavam a respeito de tudo que ouviam nas praças e mercados de peixe; imaginavam absurdos misturados à magia, feitiçaria e encantamentos.
Nesse contexto material e moral tiveram início os rumores sobre a existência de uma misteriosa fraternidade chamada Rosa-Cruz. No começo, o assunto circulava em grupos fechados e manuscritos eram enviados às pessoas cultas. Em seguida, informações e cópias mais ou menos fidedignas eram levadas para lugares distantes ao mesmo tempo. Finalmente, espalhavam boatos sobre os autores dos textos. Então, sobrevinham as versões impressas. Primeiro na Alemanha, imediatamente após o faustuoso casamento do alemão Frederico V com a inglesa Elizabeth Stuart. Três publicações sucessivas, na forma de manifestos, apareceram na cidade alemã de Kassel, a partir de 1614: "Fama Fraternitatis Roseae Crucis oder Die Bruderschaft des Ordens der Rosencreutz" (Notícia da Fraternidade da Rosa e da Cruz ou Irmandade da Ordem dos Rosacruzes) seguida da "Confessio Fraternitatis oder Bekenntnis der Societät und Bruderschaft Rosencreutz" (Confissão da Sociedade e da Fraternidade Rosa Cruz) em 1615 e da "Chymische Hochzeit Christiani Rosencreutz anno MCDLIX" (Casamento Químico de Christian Rosencreutz ano MCDLIX) em 1616.
Foi na França, com o justificável atraso de 50 anos desde as bodas de sangue de São Bartolomeu, que a repercussão do movimento Rosa-Cruz teve maior impacto. Numa manhã do outono de 1623, Paris acordou surpreendida por cartazes anunciando a chegada de uma enigmática irmandade. A tribuna escolhida não poderia ser melhor: a Pont Neuf , construída sobre o local onde, trezentos anos antes, Jacques de Molay, último Grão-Mestre dos Templários, fora queimado numa fogueira. A ponte era o lugar preferido dos artistas de rua e populares. Não houve quem não tomasse conhecimento do anúncio: "Nós, deputados do Colégio Principal dos Irmãos da Rosa-Cruz, estamos, visíveis e invisíveis, sediados nesta cidade pela graça do Altíssimo, para o qual se voltam os corações dos justos. Ensinamos e demonstramos sem a necessidade de livros, falamos toda espécie de linguagem do país onde estamos, com o objetivo de tirar os homens, nossos semelhantes, do erro e da morte". E convidavam os interessados a juntarem-se à fraternidade, com a ressalva: "os que nos procurarem por mera curiosidade, jamais nos encontrarão... mas, se seu desejo for autêntico, nós os encontraremos e nos faremos reconhecer". Os analfabetos, que eram a maioria, contentaram-se com as explicações truncadas dos mais espertos: deputados de uma corporação... homens invisíveis... falar em línguas... vencer a morte... Ofertas tentadoras! Quem não desejava tornar-se invisível e bisbilhotar todos os recantos da cidade, entender todas as línguas e se tornar imortal? O sensacionalismo estava armado. Com mais uma pitada de enxofre, uma asa de morcego e uma perninha de rã, estaria pronta a receita para mandar incautos deputados, atores de rua e artistas para a fogueira.
Mas, desta vez não foi fácil. Os responsáveis pelos cartazes estavam ocultos numa espessa nuvem de mistério. Quando muito, velavam com C.RC. o nome emblemático de Christian Rosencreutz: (era um cristão), havia uma rosa e a salvífica imponência da cruz. A quem pegar? – onde estaria o Diabo? O clero católico pressentiu indícios de novas trampolinagens protestantes e colocou-se em guarda. Já o Rei Louis XIII, mesmo imberbe, colocou barbas de molho: ordenou uma investigação por parte de seu bibliotecário, Gabriel Naudé, que redigiu, às pressas, uma instrução à França sobre os irmãos da Rosa-Cruz ("Instruction à la France Sur la Vérité des Frères de la Rose-Croix" Paris: Chez François Julliot, 1623). Parece que Naudé sabia muito mais sobre Rosa-Cruz do que deixou transparecer nas instruções à França. Disse que a tal fraternidade era tão secreta quanto o significado do símbolo adotado por eles – uma cruz com uma rosa no centro: se eram cristãos, por que substituíam a imagem do Salvador por uma rosa? Naudé afirmou que os membros da fraternidade possuíam um único livro no qual aprendiam tudo que já estivesse noutros livros, escritos ou por serem escritos; que os adeptos da Rosa-Cruz não estavam sujeitos nem à fome, nem à sede e, por isso mesmo, não envelheciam nem adoeciam; que, a despeito de buscarem a imortalidade, escolhiam sucessores para seus lugares na irmandade após suas mortes e tomavam precauções para que os lugares de seus sepultamentos ficassem incógnitos; que eram mesmo invisíveis e, quando perceptíveis, vestiam-se de acordo com os costumes do país por onde passavam; que se reuniam secretamente uma vez por ano; que a fraternidade passava por períodos de 120 anos entre adormecimento e publicidade; que dominavam todos os espíritos e demônios, colocando alguns deles sob suas ordens. Havia pontos perigosíssimos nas revelações de Naudé insinuando hostilidades entre os invisíveis e o Papa, e que propugnavam pela criação de um bem-aventurado governo mundial – ou Império – que obedeceria apenas às leis contidas nos quatro Evangelhos. Por outro lado, Gabriel Naudé reconheceu que os Rosa-Cruzes eram caridosos e exerciam gratuitamente a medicina. Seria Naudé, ele mesmo, um Rosa-Cruz e suas instruções à França uma trama para despistar o Rei e os curiosos? Ou tudo não passava de uma pilhéria rocambolesca urdida pelo irônico bibliotecário real?
Seja como for, as instruções à França revelaram alguns vestígios da influência protestante no movimento dos invisíveis. Havia entre os luteranos um grupo independente que adotava certo grau de misticismo, os pietistas. Essa corrente buscava a salvação tanto na Bíblia quanto nos manuscritos de Jacob Boehme e Sebastian Franck. Quanto ao secreto símbolo – uma cruz com uma rosa no centro –Martin Lutero havia sugerido como distintivo da Reforma uma rosa de cinco pétalas com uma cruz no centro. Além disso, a rosa era usada desde a Idade Média como sinal de assunto sigiloso. Daí a expressão latina sub rosa – sob a rosa. Quando se tramava uma rebelião, os conspiradores colocavam uma rosa no teto do aposento onde se realizavam reuniões mantidas em segredo.
Os eruditos sempre desconversavam quando o assunto era a Rosa-Cruz. Por exemplo, no ano de 1628 apareceu, em Frankfurt am Main, uma obra intitulada "Summum Bonum" assinada por Joachim Fizzio, pseudônimo de Robert Fludd, médico, filósofo e místico inglês. Quando perguntado se ele pertencia à irmandade Rosa-Cruz, Fludd respondia: "Eu não tenho esse mérito, entretanto sei que ser Rosa-Cruz é uma bênção que depende da graça de Deus". Acontece que, 100 anos antes, Henrique VIII havia rompido com a Igreja Católica Romana, fazendo dos monarcas ingleses, líderes da Igreja Anglicana, a um só tempo católica e reformada. Isso "poupava" a ilha da intensa propaganda dos manifestos. Só mais tarde, em 1652, depois de baixada a poeira, o galês Thomas Vaughan traduziu a Fama Fraternitatis para o inglês, evitando admitir suas ligações com a Rosa-Cruz.
O fato é que o movimento Rosa-Cruz desencadeado nas duas primeiras décadas do século XVII foi concebido por pessoas (ou pessoa) de pensamento iluminado, intelectuais de genial entendimento sobre questões sociais, políticas e religiosa. Não eram fanáticos, nem visionários e muito menos "homens-invisíveis". Tratava-se de reformadores dotados de firmes concepções e imaginação brilhante, fazendo extensa publicidade sem serem descobertos. Não tinham vocação para o martírio, mas a predestinação para a Verdade.
Na Alemanha, a suspeita de autoria caiu sobre Johann Valentin Andreae (1586-1654), jovem de uma família de Würtemberg envolvida com a reforma luterana. Há quem conteste a autoria de Andreae porque, na época, ele tinha apenas 28 anos. Ora, aos 17 Andreae já havia escrito uma peça de teatro no estilo elisabetano com o título "Núpcias Químicas". Apesar de ser cópia de 'O Sonho de Polifilo", de Francesco Colonna (1499) com inserções do "Quinto Livro" de François Rabelais (1564) e da "Viagem dos Príncipes Afortunados" de Beroaldo de Verville (1610), não se pode negar o conhecimento de Andreae e sua versatilidade em idiomas. Por outro lado, as obras nas quais Andreae se inspirou eram repetições de "A Divina Comédia" de Dante Alighieri, que começa com estes versos: "Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura..." (No meio do caminho desta vida, fiquei perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída...) Na juventude, Dante Alighieri (1265-1321) confessara sua ligação com o movimento literário "Fedeli d’Amore" voltado para ideais de cavalaria e o amor cortês, objetivando a regeneração da sociedade. Apesar dessas evidências e de Andreae ter considerado a Rosa-Cruz uma igreja invisível capaz de trazer paz e concórdia para o mundo, ele permaneceu negando sua vinculação direta com os Rosa-Cruzes. Assim, conseguiu escapar das investigações. Mas caiu em desgraça ao ser considerado um pietista. O clero luterano mandou incendiar sua casa juntamente com seus escritos.
Muitos pesquisadores atribuem a autoria dos manifestos a Francis Bacon. Embora não possa ser comprovada, esta hipótese é a mais plausível de todas. Bacon nasceu em Londres no dia 22 de Janeiro de 1561. Viveu algum tempo na França onde absorveu o conhecimento dos países vizinhos. Leu as obras de Dante Alighieri e pesquisou as tradições trazidas do Oriente pelos cruzados. Na Inglaterra, estudou jurisprudência no Gray’s Inn convivendo com reformistas influenciados pelos conhecimentos do Oriente. De forma análoga aos objetivos traçados nos manifestos da Rosa-Cruz, Bacon descreveu métodos para se alcançar o verdadeiro saber. Empenhou-se em verificar as falsas noções (idola) arraigadas no intelecto a obstruir a busca da verdade e impedindo o progresso das ciências. Bacon publicou a "Nova Atlântida" no mesmo ano de sua morte (1626). Essa obra revela um paralelo entre o Estado ideal da Casa de Salomão e a propaganda Rosa-Cruz de Paris.
2 . A VIAGEM EM FAMA FRATERNITATIS
Os manifestos Rosa-Cruzes estão repletos de enigmas e obscuro simbolismo cuja interpretação demanda conhecimento das condições históricas da época e de possíveis "chaves" só conhecidas pelos leitores aos quais esses textos se destinavam. Mas a visão do passado nos permite alcançar o futuro e descobrir o sentido dos manifestos Rosa-Cruzes para os dias de hoje. Antes de mais nada, é preciso compreender que os símbolos servem mais para velar do que para revelar alguma coisa; e que os autores dos manifestos usaram linguagens especiais porque desejavam exprimir um conhecimento inacessível ao entendimento vulgar. Porém, partindo de uma análise elementar, podemos identificar as seguintes "chaves": 1 –A lenda egípcia da peregrinação de Ísis e a ressurreição de Osíris; 2 –Elementos da Arte Real relativos à morte, reencontro e ressurreição de um mestre; 3 –O arquétipo da viagem representado nas "circumambulações iniciáticas"; 4 –O arquétipo do casamento sagrado ou hierosgamos; 5 –Princípios da restauração do cristianismo original inspirado na Reforma Protestante; 6 –O encontro do Ocidente com o conhecimento Islâmico; 7 –Reminiscências da Ordem do Templo e o assassinato de seu último Grão-Mestre, Jacques de Molay.
Algumas edições do Fama trazem uma espécie de introdução burlesca que expõe ao ridículo as pretensões dos letrados em transformar as pessoas e os costumes. Trata-se da "Allgemeine und General Reformation der ganzen weiten Welt" (Reforma Universal de Todo o Mundo), imitação das viagens ao mundo das musas de Miguel de Cervantes, Cesare Caporali, e George Wither –todos do mesmo século. A narrativa tem lugar no areópago quando Apolo reuniu os sete sábios da Grécia para providenciarem a erradicação da miséria humana. Após várias propostas absurdas, a plenária encaminhou a Apolo proposta de lei obrigando os vendedores ambulantes de leguminosas e azeitonas pretas a aumentarem suas medidas; tabelaram o preço do arenque e fixaram a cotação do repolho. Em suas considerações finais, o Orador, Bias de Priene, disse que o mal pertence à natureza humana e o ápice da sabedoria consiste em sermos prudentes o bastante para evitarmos dores de cabeça, deixando as coisas exatamente como estão.
No texto principal, Fama reassume a austeridade narrando história do "mais divino e altamente iluminado Pai, nosso Irmão C.RC., chefe e fundador de nossa Fraternidade..." nascido às margens do Reno. Pelo que se conclui do restante do texto, a data de nascimento seria 1378. Aos 6 anos de idade o Irmão C.RC. foi enviado para uma abadia onde aprendeu grego, latim, hebreu e magia . Aos 16, partiu em peregrinação para a Terra Santa em companhia de um amigo que morreu em Chipre. Permaneceu em Damasco recebendo ensinamentos de sábios que lhe confiaram a missão de comunicá-los à cristandade e fundar uma sociedade secreta. Foi sucessivamente conduzido a uma "cidade filosófica", onde passou três anos. Percorreu o Líbano, a Síria, Egito, Damcar, Fez (cidade do Marrocos) e visitou o Santo Sepulcro. Cumpriu cinco anos de retiro num local solitário e regressou à Europa através da Espanha. Depois, recrutou seguidores e batizou a sede da irmandade como "Domus Sancti Spiriti" (Templo do Espírito Santo) onde curavam doentes e consolavam os desesperados.
Essas viagens indicam a provável reorganização da Ordem do Templo (os Cavaleiros de Cristo e outras ordens militares da Idade Média) após a destruição dos Cavaleiros Templários em 1314. Há vários indícios que se ajustam à dramática história dos Templários, dos quais citaremos alguns: o Irmão C.RC. morreu na Inglaterra aos 106 anos (portanto, em 1484). Alguns anos mais tarde – 1604, vésperas da publicação dos manifestos –seu sucessor, o Imperator N.N., descobriu o túmulo do Pai C.RC. numa edificação de sete lados, constantemente iluminada por lâmpadas inextinguíveis. Na parede que obstruía a entrada estava escrito: "post 120 annos patebo" (após 120 anos serei encontrado). No centro da construção havia um altar cilíndrico com a inscrição: "A C.RC. hoc universi compendium unius mih sepulcrum feci" (a Christian Rosencreutz, compêndio único do universo, fiz este túmulo). Em volta de um primeiro círculo, lia-se "Jesus mihi omnia" (Jesus é tudo para mim); no círculo do meio, quatro figuras com as inscrições: "Nequaquam Vaccum" (em parte alguma o vácuo); "Legis Jugum" (o jugo da lei); "Libertas Evangelii" (a liberdade do Evangelho); "Dei Gloria Intacta" (a Glória de Deus é inatacável) expressões cristãs, Templárias e da predileção reformista.
Aos cristãos da rosa e da cruz, que detêm o único compêndio do universo, fora edificado aquele túmulo onde repousava o corpo mumificado do Pai C.RC. Tinha na mão direita o Liber T (Livro T); nas laterais uma Bíblia, um vocabulário, um itinerário de viagem e sua biografia. A letra T, ou tau grego, representa a verdade e a luz da mente. Corresponde à última letra do alfabeto hebraico (taw) mencionada pelo profeta Ezequiel (Capítulo IX: 4): "Passa pelo centro de Jerusalém e marca com um T as testas dos homens que suspiram e que gemem por causa das abominações que se cometem". Implicações maçônicas desta simbologia se completam no capítulo VII do livro de Amós: "Disse o Senhor: "Eis que vou passar um fio de prumo no meio do meu povo e não tornarei a perdoá-lo" –textos bíblicos aplicados à situação da Europa onde suspiros e gemidos aguardavam o alívio pelo "triplo tau" do conhecimento e pelo inexorável fio de prumo. Na tumba do Pai C.RC. lia-se a divisa cristã da fraternidade: "Ex Deo nascimur, in Jesu morimur, per spiritum reviviscimus" (em Deus nascemos, em Jesus morremos e ressuscitamos pelo Espírito). Algumas versões do Fama traziam um acréscimo intitulado Confessio Fraternitatis, esclarecendo algumas passagens e revelando o nome completo do Pai C.RC. –Christian Rosencreutz. Reafirmava a existência de uma ciência capaz de reconduzir os homens ao plano original de Deus. Esse processo, representado pelo Casamento Alquímico (união e transformação) consistia numa jornada espiritual do Iniciado em busca da reintegração.
A descoberta de um "corpo" numa 'tumba', ou do corpo de uma pessoa conhecida como C. R—C., é alegórica. A abertura de um túmulo citado refere-se à publicidade dos arquivos da Ordem que estiveram selados durante períodos de perseguição.
As iniciais C. R—C não se referiam a um indivíduo, e sim à personalidade espiritual representada pelo 'corpo' dos princípios rosacrucianos, não tendo existido ser humano algum que tivesse sido singular e exclusivamente conhecido como Christian Rosencreutz.
Christian Rosencreutz significa Christus da Rosa-Cruz ou, literalmente, 'Um Cristão da Rosa-Cruz' – o que faz do rosacrucianismo um movimento autenticamente Cristão com referência a Jesus Cristo – tal como se apresenta, por exemplo, no Capítulo Rosa Cruz do Rito Escocês Antigo e Aceito – com tudo o que impliquem as palavras CHRISTOS = ungido, o Messias, Filho de Deus ou CHRESTOS = virtuoso e bom.
Quanto aos enigmas e às supostas "chaves", voltemos a atenção para o fato de que Christian Rosencreutz morreu em 1478 na Inglaterra. Segundo o Fama, após 120 anos ele seria novamente encontrado ("post 120 annos patebo") ou seja, em 1598 na Inglaterra. Façamos as contas: Francis Bacon estava com 37 anos, quando se entregou com ardor ao trabalho intelectual redigindo os "Ensaios" à maneira dos manifestos: "oscilando por intermináveis metáforas entre política e filosofia".
3 . VIAGEM DE UM CONVIDADO PARA AS BODAS ALQUÍMICAS
Apesar da escrita hermética, os manifestos apontaram um caminho de esperança para a Europa quando não restava mais nada em que confiar. O Casamento Químico (Alquímico) de Christian Rosencreutz, publicado em 1616, traz no título a indicação "ano 1459" significando a idade de 81 anos quando Christian Rosencreutz tivera a experiência arquetípica da viagem.
As Bodas transcorrem em sete dias ou jornadas. No início da narrativa, Christian Rosencreutz é surpreendido por uma tempestade e o aparecimento de uma mulher vestida com manto azul salpicado de estrelas douradas. Ela trazia uma trombeta de ouro e um maço de cartas escritas em todas as línguas do mundo. Identificamos nessa imagem a figura de Fama, pela primeira vez revelada no jogo de palavras – Fama+Fraternitatis: notícia da fraternidade e/ou fraternidade da (divindade) Fama, personagem mitológica da notícia e da reputação. Agitando asas repletas de olhos, a divindade convidou Christian Rosencreutz para as festas de nupciais de um rei. Rosencreutz ornamentou seu chapéu com quatro rosas e atravessou no peito uma faixa escarlate –alusões à rosa vermelha de Lancaster, rosa branca de York, e as duas rosas (rosa dupla) vermelha e branca de Tudor que uniu os dois emblemas. Depois de várias peripécias, provas e perigos, Rosencreutz chegou ao portal de um castelo sobre o qual estava inscrito o versículo 38 do capítulo VI do Evangelho de Lucas: "Dai, e vos será dado". Rosencreutz misturou-se aos convidados e presenciou acontecimentos velados pelo simbolismo iniciático: a pesagem das virtudes no estilo do tribunal de Osíris; a premiação dos justos com o Velocino de Ouro dos gregos; a condenação dos injustos após beberem as taças da amargura e do esquecimento; juramentos de lealdade diante de um livro negro e a visão de um crânio que expulsava das órbitas uma serpente. Subitamente, surge um carrasco decapitando pessoas cujos corpos são estendidos em esquifes (alusão à lenda egípcia de Osíris e ao histórico massacre da noite de São Bartolomeu).
4 . VIAGEM EM DIREÇÃO AO MUNDO
René Descartes, na primeira parte do Discurso do Método conta a revelação admirável que tivera, em novembro de 1619, sobre os alicerces de uma nova ciência. Após servir à instrução militar na Holanda, Descartes viajou pela Dinamarca e Alemanha, voltando à França em 1622 onde a leitura dos manifestos Rosa-Cruzes e a popularidade dos cartazes espalhados por Paris devem tê-lo levado a se interessar pelo assunto. Colocou de lado a mixórdia ocultista que rondava a questão e prosseguiu em suas investigações guiado apenas pela razão. Procurou os Rosa-Cruzes por toda a parte. Mas suas buscas, segundo ele mesmo disse, foram infrutíferas. Contudo, a "moral provisória" que adotara no Discurso do Método num conjunto de quatro regras, seria a astuta justificativa do seu silêncio e das tais "buscas infrutíferas". Numa dessas regras, Descartes afirmou seu compromisso de obedecer às leis, aos costumes e à religião do país em que estivesse e "acolher apenas as opiniões que fossem mais moderadas". Dessa forma, Descartes evitou sérios problemas com a igreja. Apesar disso, descreveu uma espécie de "casamento alquímico" que ocorre dentro do cérebro – precisamente na glândula pineal, palácio real dos alquimistas – unindo o mundo espiritual (res cogitans) ao mundo corpo (res extensa). Descartes, Isaac Newton e Wilhelm von Leibniz parecem ter sido os derradeiros filósofos-cientistas que investigaram sobre a Rosa-Cruz no século XVII. A partir deles, a inércia do espírito humano levou as pessoas a acreditarem mais em organizações transitórias de homens comuns do que no indispensável contato entre inteligências elevadas.