Homens sem Cabeça

José Maurício Guimarães

Nesse carnaval a Mocidade Independente de Padre Miguel apresentou fantasias de ratos e homens sem cabeça para fazer crítica à corrupção. Eu não estava lá na avenida; estava em casa e vi na televisão durante um intervalo da série "House Of Cards" que estou acompanhando. Mas gostei dessa coisa de homens sem cabeça, pois bem que merecemos (ver foto no pé de página).

Vivemos num tipo de administração por exclusão: cortam-se cabeças ou pedem-se cabeças em bandejas de prata.

Por que?

- Ouvi dizer que, pouco antes de sua morte, na cama do hospital onde estava internada, Gertrude Stein perguntou: "Qual é a resposta?" Um de seus amigos disse: "Mas se você não disser qual é a pergunta, como vamos lhe dar a resposta?" Ao que Gertrude replicou: "Então, qual é a pergunta?".

 

"Quem Tem Medo de Virginia Woolf?"... é uma pergunta; é o título da peça teatral escrita por Edward Albee em 1962 (Who's Afraid of Virginia Woolf?). O trabalho literário de Albee mergulha fundo nos conflitos de comunicação entre as pessoas. Ele desmascara os motivos ocultos nas permanentes crises: as imagens idealizadas, que tentamos transformar em realidades e a hipocrisia da sociedade.

O título da peça aponta para Virginia Woolf, escritora e ensaísta britânica que, de forma corajosa e com final trágico, adotou opiniões muito pessoais em relação aos conflitos existenciais da primeira década do Século XX, especialmente os constantes choques entre o idealismo e a realidade. Na peça de Edward Albee, um casal de intelectuais na meia-idade, durante uma madrugada, e bastante embriagados, expõem suas vidas e descobrem que se odeiam e se amam a um só tempo.

A vida é feita desses paradoxos: nenhuma virtude vem desacompanhada de seu oposto: quem é muito diligente tem momentos de preguiça; quem muito ostenta humildade, é porque oculta extrema vaidade; toda castidade exagerada esconde as brasas mal adormecidas da luxúria. São os que se dizem tolerantes que nos surpreendem com os maiores arroubos de ira. Não raro o noticiário nos dá conta de franco-atiradores que durante toda a vida se fizeram passar por indivíduos quietos e mansos. Do mesmo modo, o desprendimento tem uma pontinha de inveja e frequentemente a caridade disfarça a avareza. Mesmo os santos entregavam-se aos jejuns e duras penitências, pois a santidade é alvo constante das tentações e quem guarda muita temperança oculta os assédios da gula.

A leitura que faço da peça "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?" (transformada em filme por Mike Nichols, tendo como atores Elizabeth Taylor e Richard Burton) é a do medo das contradições. O casal personagem desenterra verdades que não querem ouvir nem encarar de frente, e jogam suas desavenças um contra o outro.

O pior dos males nos relacionamentos é o medo da verdade, o medo da crítica, ou o "medo de Virginia Woolf ".

Nós que estudamos música e submetemos nossas habilidades a julgamento, milhares de vezes nos palcos, acostumamos a ouvir críticas - tanto de nossos professores como de colegas, dos maestros e mesmo do público. Uma interpretação musical pacientemente trabalhada durante meses - e que julgamos excelente - pode ser detestada por quem ouve. Um bom crítico apontará várias imperfeições no ritmo, na afinação ou no estilo. No Brasil não existem bons críticos musicais, mas na Europa e nos Estados Unidos a palavra de um crítico em sua coluna de jornal pode consagrar ou destruir um artista para sempre.

O mesmo se dá com quem escreve: um crítico experiente (ou bom revisor) há de apontar falhas no nosso texto, algumas delas primárias - simples erros de ortografia - outras de regência verbal ou concordância nominal, sem falar nas incorreções de contexto lógico muito mais difíceis de serem detectadas. Quanto mais se aprimora um escritor ou um músico, mais críticas ele deverá estar pronto para ouvir e receber como lições preciosas.

Por outro lado, o problema com os políticos é a inabilidade de extraírem preciosas lições da crítica e da oposição, especialmente daquilo que lhes revelaria as verdades que não querem ouvir ou encarar de frente ou o julgamento que expõe a má administração e a corrupção. A distância entre os tronos e a inteligência sempre foi a de um abismo. A história está repleta de homens que tiveram garganta cortada, a cabeça decepada, por apontarem as faltas dos governantes.

Noutras palavras: PARA QUEM PENSA COM CABEÇA DE MARTELO, TUDO O QUE APARECE PELA FRENTE É PREGO.

João Batista foi aprisionado a mando de Herodes Antipas Cabeça-de-Martelo e foi levado para a fortaleza de Maqueronte por denunciar a imoralidade da corte e a vida incestuosa de Herodíades. Depois de permanecer dez meses na masmorra, Salomé, filha de Herodiades e incitada por ela, seduziu Herodes numa dança erótica, pedindo como premio a cabeça de João Batista numa bandeja de prata.

Thomas Morus (1478-1535) se opôs ao divórcio de Henrique VIII Cabeça-de-Martelo negando-se a reconhecer a legitimidade de qualquer criança nascida da bigamia do Rei com Ana Bolena. Thomas Morus, diplomata, escritor e advogado, tinha até um cargo importante na corte! - era Chanceler do reino. Perdeu tudo, preferindo servir a Deus e à sua consciência do que aos desmandos do Rei. Também ele  perdeu a cabeça na Tower Hill, no dia 6 de julho de 1535, quando o carrasco desfechou-lhe uma brilhante machadada na nuca. Demorou 400 anos para que seu exemplo de homem íntegro fosse reconhecido: em 19 de maio de 1935 foi canonizado pelo Papa Pio XI.

Eu poderia contar mais uns duzentos casos de homens e mulheres martirizados por defenderem a verdade e apontar os erros dos poderosos, mas paro por aqui para preservar minha cabeça em cima do pescoço e evitar muitas lágrimas e maiores aborrecimentos. Em breve vou me embrenhar na selva onde viverei da caça e da pesca

Sirvam as histórias de João Batista e Thomas Morus como ponto de partida para nossas reflexões e mudanças de atitudes. As crises mundiais e os graves problemas que vivemos são o resultado, entre outras coisas, dos ouvidos surdos dos que nos dirigem, ao desprezo e ao ódio que têm da visão crítica de quem se empenha para um mundo mais justo.

O grande Luiz de Camões assim termina "Os Lusíadas":

Não mais, Musa, não mais que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não nos dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Duma austera, apagada e vil tristeza.

 

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